sábado, 5 de novembro de 2011

Cinamomo, Pó-de-mico e Amoreira

Rememorando as brincadeiras, os amigos, o futebol e os bons tempos
de quando a rua onde cresci era arborizada.

Pré-adolescência, aquela época da vida em que os guris deixam de brincar de ser Changemans ou Cybercops e passam a se imaginar como Romário, Bebeto, Taffarel ou até aquele menino franzino chamado Ronaldinho, que começava a incomodar as defesas. Aquela época em que os presentes de aniversário e Natal deixam de ser Comandos em Ação ou Playmobills e passam a ser bolas, tênis, meiões, calções ou camisetas de inúmeros times, da elite brasileira, do calccio italiano ou até da segundona mexicana. Era a pré-adolescência.

Na minha vizinhança não éramos muitos. Aliás, por vezes era difícil juntar Júpiter, Marte, Saturno, Mercúrio e Lúcifer (esse era apenas um personagem de seriado japonês e que, diferente do estigma do nome, não era "do mal"). Ainda que não morássemos longe de praças e campinhos, reunir 3, 4, 5 ou 6 guris e ir jogar futebol em um grande gramado parecia exagerado. Sendo assim, mesmo que aparecessem outros jogadores, um campeonatinho ou simples joguinho de duplas ou o famoso "três dentro, três fora" no "meio da rua" (de paralelepípedos de granito) era bem mais viável. E pouco nos incomodavam os carros, pois, naquela época, passavam vez por outra e raramente interrompiam nossas partidas por muito tempo.

Mas ser pré-adolescente não significa perder a criatividade infantil. A divertida mania de brincar com a criação, com a invenção, com a improvisação. Diante disso, uma "goleira urbana" não era simplesmente o recorrente espaço entre um par de tijolos ou de chinelos Ryder. Ora bolas, com chinelos nós jogamos futebol na praia! Na cidade, joga-se com a cidade! Na cidade, um portão é uma goleira (coitados dos vizinhos!), uma rampa de garagem é uma goleira, o espaço entre um poste e uma árvore é uma goleira. E assim, sendo as árvores nossos ícones de identificação dos territórios, em cerca de 100 metros de quadra tínhamos 3 "estádios": o Cinamomo, na desafiante real proximidade da esquina, ideal para o típico "três dentro, três fora" entre poste e árvore e com a opção de, do outro lado da rua, usar como gol o espaço de parede entre 2 janelas de uma casa desocupada; o Pó-de-mico (como erroneamente chamávamos o fruto do plátano), era o mais tradicional e mais polivalente, com o jogo entre poste e árvore no lado ímpar e disputas de pênalti em um portão de ferro no lado par, além do palco das partidas de duplas de “goleiro-linha” entre 2 rampas de garagem (caracterizadas por estar desalinhadas); e o Amoreira, o último a ser “criado”, usado para partidas com mais participantes, jogado no sentido da via, quando cedíamos aos pares de chinelos, que denotavam ali estar sendo disputado um jogo de “golzinho fechado”.

Passados 15, 20 anos daquela época, não jogo mais futebol, tampouco sigo morando em Rio Grande. Quando retorno à casa de meus pais, não encontro mais o Delgado, o Brunão, o Bruninho, o Corujão e, infelizmente, nunca mais verei o Negão. Não percebo nenhum guri jogando bola naquela via ainda em paralelepípedo (o que seria dificultado pelo aumento da quantidade de carros que circulam por lá). Também, principalmente, não vejo mais o Cinamomo, o Pó-de-mico ou o Amoreira. E não me refiro aos “estádios” inventados por aqueles guris que lá jogavam bola nos anos 1990. Falo das árvores. Além dos cinamomos, plátanos e amoreiras (todas no plural, pois haviam várias), também não vejo mais o salso ou o pingo-de-ouro e são poucos os canteiros ainda com grama ou qualquer capim ruim.

A segunda quadra da Rua Tiradentes, que já não era o melhor exemplo de arborização, está cada vez mais seca. A amoreira, que ficava na frente da casa de meus pais e que, junto com as demais, dava nome a um dos “estádios”, ao menos foi substituída por uma espécie de fícus, o qual, juntamente com outras 4 árvores, resiste a derrubada e a hostilização dos cimentados, pedras, ladrilhos cerâmicos e mais rampas de garagens. Esse resistente fícus, mesmo não sendo uma espécie indicada para arborização viária, há algumas semanas atrás possibilitou ver, pela primeira vez nos meus pouco mais de 30 anos de vida, um ninho de pássaro (com ovos) em meio urbano. Uma rara cena que nunca seria vista se não houvessem árvores em nossas cidades.

 

Reconheço que as raízes das árvores podem levantar calçadas, prejudicar a estabilidade de muros e entupir tubulações de água e esgoto; que as folhas caducas necessitam ser seguidamente recolhidas para não entupir bueiros em dias de chuva; que os galhos precisam ser podados para não gerar perigo de rebentar fios elétricos em dias de vento; ou que uma via sem árvores é mais iluminada e é fácil de ser vigiada, podendo desestimular a presença de ladrões ou outros marginais. Todavia, sem as árvores, perdem-se as sombras que tanto auxiliam no conforto ambiental, reduzindo a sensação térmica de calor e, inclusive, a temperatura do micro-clima urbano em dias quentes; perde-se o canteiro permeável que auxilia a drenagem na absorção da água das chuvas. Perde-se também o canto dos pássaros; perde-se a alegria das crianças colhendo amoras, pitangas, cerejas, etc., sem estar no meio rural; perdem-se as cores, que variam com a posição solar ao longo do dia e sazonalmente com o surgimento e desaparecimento de folhas, flores e frutos; e perde-se a boa convivência entre vizinhos ou transeuntes que podem parar ou sentar para conversar (ou tomar chimarrão, ler, etc.) sob as copas, se apropriando de um espaço urbano que não serve somente para circulação. Sem árvores ou pelo menos um canteirinho de grama, as calçadas parecem deixar de ser uma continuidade de nossas casas, enquanto interface de amortecimento entre o privado e o público. Sem árvores, as calçadas passam a ser apenas uma borda para as vias, simplesmente para evitar que os carros tirem “fininho” das paredes de nossas casas, como aquelas bolas que “tiram tinta” da trave nos reais campos de futebol ou que raspavam a casca de um plátano no saudoso “estádio” do Pó-de-mico. Em resumo, sem árvores perde-se a poética da vida urbana ou, em outras palavras, perde-se em qualidade da paisagem e qualidade de vida.

Vendo as árvores sumir das calçadas da Tiradentes, me questiono: deixaremos o paisagismo apenas para os oásis daqueles que podem pagar para viver desurbanisticamente nas fortalezas medievais dos loteamentos fechados, restando desértica a cidade dos comuns, para vivermos uma rotina de sair de nossas casas, entrar nos nossos carros, estacionar em parkings secos e rumar para trabalhar em nossos cubículos, fazendo o caminho inverso no fim do dia? As compras serão feitas em shoppings fechados e o futebol dos pré-adolescentes será jogado em clubes e escolinhas privadas? Viveremos em uma cidade que, mesmo não sendo aquela já ultrapassada e indesejada cidade setorizada de Le Corbusier e dos modernistas, será pragmática, sendo o espaço da “rua” exaustivamente utilizado para apenas circular? Usando de liberdade poética para interpretar as ideias já cinquentenárias de Jane Jacobs, que citava ser as calçadas um lugar a ser explorado para vitalidade urbana, não estaríamos na contramão da boa urbanidade?

Sei que estou sendo (intencionalmente) exagerado e até um tanto irônico, talvez por agora vivenciar o urbanismo como profissão ou talvez apenas por um saudável saudosismo. Conquanto, não posso negar um fato: restam apenas 5 árvores naquela quadra da Rua Tiradentes. Uma hostilização à arborização que não é pontual apenas da Tiradentes ou fato ocorrido apenas nas vias riograndinas.

Rio Grande, por sinal, tem tido boas iniciativas de paisagismo e jardinagem em algumas de suas praças e corredores verdes de avenidas, o que poderia ser expandido para as suas vias de caráter mais local, usando espécies arbóreas ou arbustivas com técnicas de plantio que minimizam o impacto nas pavimentações e redes. Porém, devolver a natureza, seus sons, seu verde e todas as demais colorações para a cidade não depende apenas de planejamento urbano feito por ação do poder público, sendo necessária também uma mudança no pensamento da população. Teremos que deixar de enxergar as calçadas apenas como caminhos e as árvores como problemas e passar a vê-las como elementos componentes de um espaço que é público, é social (e socializável), é ambiental e que agrega valor à qualidade da paisagem de onde vivemos e, consequentemente, ao nosso bem estar (refletindo em nossas memórias). Talvez só assim um dia possa retornar à Tiradentes e ver novamente pré-adolescentes jogando bola no “estádio” do Fícus ou de qualquer outra espécie que possa vir a ser plantada. Isso se a multiplicação exponencial dos carros permitir, mas daí já é outra história...

Pelotas, RS, 5nov2011.
Christiano “Kico” Toralles é arquiteto e urbanista, bolsista do curso de mestrado em Arquitetura e Urbanismo da UFPel e pesquisador colaborador do Laboratório de Urbanismo da mesma instituição.

Nenhum comentário:

Postar um comentário